Educação antirracista e primeira infância
Por: Heloise da Costa | Analista de Ações Afirmativas e Treinamento em Empresas
Antes de falarmos sobre antirracismo e infância, é importante pontuar que, quando se fala em raça, não é uma tentativa de aproximação de uma definição da biologia, ou seja, ela não é biológica – no sentido de dizer que pessoas brancas, negras, amarelas e indígenas pertencem a espécies diferentes -, mas uma construção social.
Nesse sentido, a raça determina as experiências de grupos sociais, tomando o fenótipo, ou seja, as características físicas visíveis como base. É a partir dela também que se constroem discursos que buscam criar hierarquias e atribuir a cada grupo racial aspectos morais, psicológicos, comportamentais, culturais, intelectuais, entre outros.
Essa configuração social a partir do fenótipo gera desigualdades e discriminações, ou seja, o racismo. Para professor Silvio Almeida, no livro Racismo Estrutural, este se apresenta como uma “decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares”(p.38).
Assim, um dos pontos importantes a se considerar em uma sociedade que se estabelece a partir das desigualdades raciais é que podemos notar que o racismo se manifesta e espalha também no âmbito das instituições e este modelo está presente em todas as suas instâncias, dentre elas a escola.
A escola é, sem dúvida, na nossa sociedade, uma das principais formas de ampliação e de intensificação dos processos de socialização das crianças. É lá que ocorrem, muitas vezes, os primeiros contatos com outras crianças e adultos fora do ambiente familiar, além de outras ferramentas para obtenção e construção dos saberes e de conhecimento.
Dessa forma, precisamos também direcionar para a escola um olhar cuidadoso, no sentido de compreender as dinâmicas sociais que estruturam a sociedade, a fim de construir novos caminhos que propiciem a desconstrução das bases discriminatórias existentes. Nesse sentido, uma educação antirracista é de extrema importância nesse processo.
Mas o que é educação antirracista?
A partir da compreensão acerca do racismo estrutural e institucional, apresentada acima, precisamos pensar em como uma sociedade de base racista precisa trabalhar no sentido de desconstruir o modo de vida e organização vigentes. Nesse sentido, uma educação antirracista funciona como um recurso poderoso no processo de melhoria do ensino e da preparação das crianças e jovens para a prática cidadã.
A educação antirracista é, portanto, um mecanismo que busca a erradicação do preconceito e da discriminação. Por meio dela, podemos construir outras formas de transmissão de saberes e abandonar os estereótipos tão arraigados na nossa maneira de ver o mundo.
Partindo disso, é importante entender que uma educação antirracista é propositiva, não apenas responsiva; ou seja, ela não se pauta apenas no repúdio ao racismo, mas na construção de caminhos, ferramentas e práticas que visam a mudança na forma como enxergamos e com ensinamos os outros a enxergarem o mundo e as pessoas.
Ela se dá pela construção de uma agenda, a qual visa proporcionar a pais, educando, professores e a toda a sociedade ferramentas e narrativas outras que funcionam no sentido de dar visibilidade e positivação ao que é estigmatizado, muitas vezes, por falta de conhecimento.
E por que é importante iniciar uma educação antirracista ainda na 1ª infância?
Este é o período em que a criança está iniciando o seu processo de contato e compreensão do mundo. Por isso, é importante que ela seja, desde cedo, educada para o tratamento igualitário e respeitoso com todas as pessoas, independente do seu pertencimento racial.
Todos nós somos seres individuais e coletivos e a construção de nossas identidades, valores e visões de mundo também se darão a partir daquilo que observamos ao nosso redor.
A professora Eliane Cavalleiro, ao discutir o silêncio do lar e o silêncio escolar, para tratar da questão das relações raciais na infância, nos mostra que a nossa sociedade se pauta na construção de estereótipos e características negativas sobre pessoas negras e sobre aspectos relacionados às suas culturas, modos de ver o mundo, religiosidade etc. Ao mesmo tempo em que isso acontece, há, em contrapartida, a positivação da imagem do branco – sempre tido como a norma, o belo, o intelectual, o bom.
Historicamente, as instituições escolares têm se pautado na veiculação de um currículo excludente, o qual toma apenas como base de conhecimento legítimo aquilo que advém de padrões eurocêntricos. As culturas, conhecimentos e cosmovisões negras e indígenas são apagadas da estrutura escolar e, mais, são muitas vezes, colocados em segundo plano ou deslegitimados.
Embora o cenário tenha passado por melhorias, não podemos ignorar que ainda há a veiculação, em materiais didáticos infantis, pessoas negras e indígenas representadas em posições subalternas ou como não protagonistas, apenas espectadoras. Isso faz com que as crianças desde sempre compreendam que o ser branco é estar em posições mais altas, seja em relação à beleza, às profissões, à intelectualidade, à capacidade etc. Essa representação molda tanto os processos de construção de autoestima de crianças negras e indígenas quanto o de crianças brancas.
Visando atuar nesse cenário, houve diversas iniciativas e movimentações no intuito de tornar a escola um lugar de promoção da autonomia e da construção de uma sociedade mais igualitária racialmente. Podemos citar, dentre tantas ações, a promulgação da Lei 10.639/03, a qual estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura da África e dos africanos. Esta lei alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o documento mais importante para reger a educação do nosso país e, em 2008, foi substituída pela lei 11.645, a qual prevê também o Ensino de História e Culturas Indígenas.
Tais leis são fruto de anos de reivindicações e articulações do Movimento Negro que, por sua vez, enxerga na educação uma ferramenta indispensável para a redução das desigualdades raciais no Brasil. São essas articulações que promoveram e ainda promovem grandes mudanças nas estruturas sociais e educacionais, no que tange à questão racial.
Muito embora a Lei 10.639/03 tenha completado 17 anos, ainda podemos perceber que ela não está sendo implementada da forma mais efetiva e, nesse sentido, é imprescindível que os pais, mães, responsáveis e a sociedade em geral continuem acompanhando e cobrando a sua efetividade. Precisamos acompanhar de perto as instituições escolares e cobrar delas a aplicação das leis, exigir a contratação de profissionais negros e/ ou indígenas e a construção de um currículo que englobe os mais variados tipos de saberes.
Além disso, é importante também nos atentarmos que a educação antirracista não é apenas competência das instituições escolares. Ela também precisa ser uma prática familiar e no espaço privado de nossas casas. Precisamos observar o que nossos filhos e filhas assistem, quais são as palavras, termos e brincadeiras que reproduzimos em casa, a que pensamentos preconceituosos e discriminatórios ainda estamos presos.
Sem dúvida, a educação antirracista é processo. Ela nunca termina e precisa ser sempre renovada e alimentada em todas as nossas instâncias de convivência. Se queremos não apenas viver em um mundo não racista, precisamos ser antirracistas e ensinar aos nossos filhos a serem igualmente antirracistas, pois só assim, conseguiremos avançar como indivíduos e como sociedade.